O negro que mudou a história Imprimir
Escrito por Indicado en la materia   
Domingo, 01 de Junio de 2014 10:00

Escolhido por Lula como se quisesse demonstrar que a “democracia racial” realmente existe neste país, o ministro Joaquim Barbosa deixa o Supremo Tribunal Federal “para entrar na historiografia brasileira”, segundo observadores.

Ministro Joaquim Barbosa anuncia aposentadoria do Supremo: desilusão com colegas e problema de saúde

Amado e odiado, há os que viram nele o justiceiro implacável que pôs na cadeia políticos e banqueiros tradicionalmente protegidos pela impunidade. Contrariou o dito popular, uma verdade em vigor há 200 anos, segundo o qual cadeia foi feita para pobres, negros e prostitutas.

Impôs a sua marca nas discussões virulentas com os seus pares para defender seus pontos de vista, o que nunca foi comum na Corte Suprema. Pode até ser criticado pelos momentos de autoritarismo. Justamente um negro, de origem humilde. Deixou evidente que não tinha obrigações de reconhecimento ao ex-presidente Lula, como se fosse mais um preposto obediente aos interesses do governo. O destaque que se deu ao aspecto étnico não tirou de Joaquim Barbosa o respeito pelos seus conhecimentos jurídicos. Ninguém contestou que ele reunia todas as condições para chegar ao ápice da magistratura.

Sai na hora certa depois de 11 anos construindo uma história pessoal única. Disputado por todos os partidos pelo seu potencial como “puxador de votos”, Joaquim Barbosa, deliberadamente deixou passar todos os prazos para filiação partidária, de maneira a tornar impossível sua candidatura às próximas eleições. É a pasta de dentes que não entra mais no tubo. Poderia ser considerado oportunista, em vez de um virtuoso salvador da pátria. Tivesse atendido ao canto da sereia teria passado recibo aos que o acusavam de ter dado condução política ao processo do mensalão. Preferiu ser fiel à imagem de juiz que finalmente atendeu às expectativas da sociedade na reparação de delitos cometidos por ocupantes de cargos públicos.

O magistrado deixa a toga bem antes de chegar à idade de 70 anos, que compulsoriamente o afastaria do cargo. Livra-se do incômodo de passar dois anos sob a presidência de Ricardo Lewandowski, seu mais ferrenho oponente durante o julgamento do mensalão. As discussões entre ambos, por vezes beirou a incivilidade. Quem sabe, Barbosa não quisesse passar pelo dissabor de ver derrotada pelo plenário, sua última decisão de negar direito ao trabalho fora da prisão, antes de cumprido um sexto da pena, ao ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, e ao ex-presidente do PT, deputado José Genoíno. Valeu-lhe o sexto sentido a avisar: missão cumprida. Nos últimos anos, por motivos diferentes, Nelson Jobim, Ellen Grace e Eros Grau se aposentaram quando ainda tinham tempo pela frente. Mas não houve comoção nem maiores especulações. Joaquim Barbosa é um caso peculiar. Dizem que a notícia da saída foi festejada no Presídio da Papuda, como se fosse gol da seleção, além de motivar o humor dos chargistas.

A expectativa, agora, é sobre quem a Dilma vai escolher para indicar o substituto de Joaquim Barbosa e reforçar a bancada já majoritária no STF. Será outro negro? Um sansei? Uma mulher? Dizem que, para maior segurança e a fim de evitar surpresas, Lewandowski é que vai escolher. O importante é que a Ação Penal 470, mais que um palpite para o jogo do bicho contribuiu para o fortalecimento da Justiça. A transmissão do julgamento ao vivo, pela TV, provocou as reações de especialistas e de leigos sobre deliberações que permitiam as mais variadas interpretações.
O povo entendeu, sim, os conceitos mais complexos. O disposto na Constituição - “todos são iguais perante a lei” - começa a ser um conceito vivo e não mais um punhado de “letras mortas”. A condenação de 25 dos 39 réus do processo, graças às posições obstinadas de um relator negro, enche de esperança a todos nós. O legado que deixa o ministro em vias de se aposentar deve ser inspirador àqueles que, em todas as instâncias trabalham pela efetividade da Justiça. Quem sabe o Supremo quebre outros ineditismos, daqui para frente.
Zarcillo Barbosa
O autor é jornalista e articulista do JC

 

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Última actualización el Miércoles, 04 de Junio de 2014 00:46