Novo livro de Pedro Juan Gutiérrez mostra a homofobia da Cuba "revolucionária" Imprimir
Escrito por Indicado en la materia   
Jueves, 04 de Agosto de 2016 10:46

Pedro Juan e Fabián se conheceram durante a Crise dos Mísseis, em 1962. O episódio causou tensão mundial com a descoberta de que, em território cubano, mísseis nucleares soviéticos apontavam para os Estados Unidos.

O escritor cubano Pedro Juan Gutiérrez. Algumas de suas obras, que falam dos problemas de Cuba, são proibidas na ilha (Foto: Divulgação)

Sem saber de nada disso, os dois alunos montavam guarda num colégio no município de Matanzas. Fabián era um menino franzino de óculos fundo de garrafa e tendências homossexuais. Pedro Juan, um machão rebelde e grosseiro. A amizade não durou muito.

 

Os dois só voltariam a se encontrar nove anos depois. Em 1971, Pedro Juan foi mandado a uma fábrica de carne enlatada, oficialmente intitulada Unidade Militar de Apoio à Produção (Umap), por vagabundagem. Em meio às panelas com gordura fervente na cozinha, ele encontrou Fabián – nitidamente desesperado com o lugar, os afazeres e as companhias. Pedro Juan, por camaradagem, pergunta ao colega o que ele está fazendo lá, mas ele já imaginava.

Fabián foi um dos muitos homossexuais a serem obrigados a trabalhar nas Umaps durante as décadas de 1960 e 1970. Uma espécie de campos de concentração, as Umaps eram uma tentativa dos revolucionários de acabar com comportamentos que não se encaixavam na conduta masculina e comprometida de seus ideais. Quem não contribuía para o crescimento do comunismo tropical, devia ao menos trabalhar – sem realmente viver. Afinal, o trabalho enobrece o homem.

A história, parte do livro Fabián e o caos, é baseada em episódios reais da juventude de Pedro Juan Gutiérrez, de 66 anos, um dos escritores cubanos mais traduzidos e reconhecidos da atualidade. Demorou mais de 20 anos para Gutiérrez decidir narrar a vida de Fabián. “Havia um problema moral e ético. Estava em dúvida se deveria utilizar a vida dele como tema de um livro”, disse em entrevista a ÉPOCA. “Fabian e eu éramos mais que amigos, éramos irmãos. Mas quando se escreve um livro biográfico, é muito comum que essa dúvida surja.”

Sua obra, uma espécie de surrealismo sujo, mescla elementos fantásticos típicos da literatura latino-americana com passagens tão explícitas que chegam a causar estranhamento ao leitor. A tendência dionisíaca rendeu-lhe comparações a Charles BukowskiHenry Miller. Durante os anos 1990, Pedro Juan escreveu sobre o empobrecimento de Havana: a decadência dos prédios, dos carros e das fábricas e a carência de comida, de bebida alcoólica e até de água. Os testemunhos, sempre autobiográficos – o alter ego, Pedro Juan, é personagem recorrente –, fazem um inventário franco do impacto que a queda da União Soviética causou no trópico comunista.

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Quase todas as histórias de Pedro Juan acabaram proibidas na ilha. Apenas seis, dos mais de 20 títulos publicados no mundo, circulam por lá. Fabián e o caos não é um deles, ao menos ainda. Cuba vem tentando melhorar sua postura com relação à homofobia. Desde 2008, a capital Havana sedia a Parada Gay local. No entanto, levou 50 anos para que Fidel Castro, numa entrevista em agosto de 2010,assumisse a culpa pela perseguição a homossexuais no país.

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Um dos nomes responsáveis pelas mudanças é Mariela Castro, filha do atual presidente, Raul Castro. À frente do Centro Nacional Cubano de Educação Sexual (Cenesex, na sigla em espanhol), ela desenvolve programas e atividades que incentivam a aceitação de LGBTQI (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, queers e intersex) entre a população e também em âmbito legal. “O trabalho de Mariela tem sido fundamental para o avanço dos direitos LGBTQI em Cuba desde 2005”, afirma a ativista e blogueira cubana Yasmín Silvia Portales. “Não há dúvidas de que, sem o valor simbólico de seu sobrenome, as transformações nos meios e nas novas políticas públicas que nos beneficiam demorariam muito mais a acontecer.”

Mas Yasmín alerta que a atuação de Mariela no Cenesex acaba sendo a única referência de ativismo em nível nacional, o que pode ser um problema. “O centro oferece cursos de formação em direitos sexuais e reprodutivos, direitos humanos e outros temas que permitem um trabalho consciente contra a homofobia, a transfobia e a bifobia, mas acaba controlando as ações dos grupos que forma e não nutre uma sociedade civil independente – nem ajuda a maturar uma comunidade LGBTIQ combativa.”

Antes da revolução, já havia leis estritas contra a homossexualidade em Cuba. A palavra “maricón” era comumente usada como ofensa. No entanto, floresciam bares e clubes voltados para o público gay. A homossexualidade também era um dos pilares da próspera indústria de prostituição cubana. Com a Revolução de 1959, a homofobia e o machismo já existente tornaram-se sistematizados e institucionalizados. O novo aliado da ilha, a União Soviética, tinha políticas hostis contra gays e lésbicas e via a homossexualidade como um produto decadente da sociedade capitalista e burguesa.

Os “maricones” passaram a ser vistos como agentes do imperialismo. “Não podemos acreditar que um homossexual poderia reunir as condições e os requisitos de conduta que permitiriam considerá-lo um verdadeiro revolucionário, um verdadeiro militante comunista”, anunciou Fidel Castro numa entrevista ao fotojornalista americano Lee Lockwood, em 1965. “Nas condições em que vivemos, a causa dos problemas que nosso país enfrenta, devemos imprimir em nossos jovens o espírito da disciplina, da luta e do trabalho.”

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A experiência da guerrilha, que dominava a estrutura política do movimento, conferiu à Revolução Cubana um forte sentido de masculinidade. Uma das muitas vítimas do agravamento da homofobia pós-revolução foi o poeta Reinaldo Arenas. Apesar de ter apoiado a revolução nos primeiros anos, ele não foi poupado. Sofreu com a censura e a repressão, sendo perseguido, preso, torturado e forçado a abandonar seu trabalho, como conta sua biografia Antes que anoiteça. Arenas só conseguiu uma autorização para sair do país nos anos 1970. Mudou-se para Nova York, onde foi diagnosticado comaids.

O escritor peruano Mario Vargas Llosa alega que um dos motivos que o fizeram desacreditar na Revolução Cubana e na ideologia socialista foram as Umaps e a repressão homossexual.  Ele se deparou com as instituições de recuperação em suas muitas viagens à ilha na década de 1960. Chegou a manifestar seu espanto em uma carta a Fidel. O líder, então, o chamou para uma reunião com outros intelectuais queixosos. A reunião durou 12 horas, mostrando que ele não estava aberto ao diálogo.

Fabián e o caos (Foto: Divulgação)

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Foi só a partir da segunda metade da década de 1990 que uma visão um pouco menos reacionária da sexualidade começou a ganhar espaço. Com o colapso da União Soviética em 1991, Cuba entrou numa crise econômica, um momento da história cubana que ficou conhecido como Período Especial em Tiempo de Paz. A queda do aliado também permitiu o afrouxamento do embargo norte-americano. Além disso, após 30 anos de revolução, houve uma mudança de geração. Os costumes e o ideais começavam a mudar. “A homofobia do Estado diminuiu porque não havia recursos para ser levada adiante”, afirma Yasmín. “Tornou-se sutil em alguns espaços em nome do beneficio econômico e se justificou em outros momentos como necessidade política.”

Atualmente, o cenário é mais animador. A homossexualidade não faz mais parte do Código Penal e as políticas de saúde referentes à aids incluem a luta contra a homofobia. Transexuais recebem tratamento integral garantido e sem custo. Alguns grupos de ativistas recebem patrocínio do Estado. Mas ainda é possível fazer mais. “O panorama mudou completamente. Hoje em dia, nos mobilizamos mais nesse sentido, há menos problemas, mais reconhecimento e mais respeito. Mas Cuba continua sendo um país machista, como muitos outros na América Latina”, afirma Pedro Juan. Na ilha ainda não há lei de antidiscriminação e a estrutura legal é orientada em benefício das pessoas heterossexuais casadas legalmente (desde os direitos de visita hospitalar até a herança). A esperança de ampliação dos direitos homossexuais reside agora na abertura da economia cubana,  inclusive para o chamadoMercado Rosa, que pode trazer dólares para uma ilha carente de divisas.

EPOCA

Última actualización el Lunes, 08 de Agosto de 2016 11:02